Um único argumento
A transformação recente da violação em crime público corresponde ao pensamento que sempre exprimi em artigos, conferências e aulas. O argumento principal apresentado pelos autores que ainda contestam amedida é a autonomia da vítima, que deveria ter o poder de decidir promover o processo penal. No entanto, a autonomia é e só pode ser justificada pela proteção contra a sua estigmatização e, geralmente, é esta a lógica seguida pelos autores adversos à natureza pública do crime. Idênticoargumento foi sustentado, há décadas, contra a conversão em crime público da violência doméstica e também foi ultrapassado pelo Parlamento.
Na realidade, há sentimentos de culpabilização, vergonha e medo de estigmatização social de qualquer vítima de violação que resultam de uma abordagem perversa da situação pela comunidade e dos valores negativos que associam o crime à “provocação” da vítima ou ao seu comportamento (veja-se o impressivo caso real representado por Jodie Foster no filme “Os Acusados”, de Jonathan Kaplan). Acresce, ainda, a desvalorização da imagem social da vítima, como pessoa “manchada”, transferindo-se para ela a culpa do agressor ou da sociedade que não se desvincula do agressor.
É certo que a vítima tem todo o direito a ser defendida do “voyeurismo” e merece toda a proteção contra o arrastamento do nome e da imagem no universo mediático ou nas redes sociais. Mas essa não é nem nunca foi razão para que o Estado não promova a ação penal sem dependência do impulso da vítima, em função da extrema gravidade de um crime queatenta contra o mais íntimo de cada ser e representa um dos vértices da autonomia da pessoa. Aliás, a associação natural da violação a outros crimes como a ofensa da integridade física ou o homicídio revela bem quão absurdo é o Estado, no seu papel punitivo, não se colocar no papel da vítima, dignificando-a e representando-a contra os sentimentos negativos que a estigmatizariam.
A culpa do criminoso, do grupo social e da comunidade não se pode transferir para a vítima nem se deverá acalentar um “não meter a colher” entre o violador e a vítima. Como já disse noutras ocasiões, a democracia está presente na viela escura, no quarto do casal, no descampado, na sala privada em que alguém pratica contra outra pessoa uma violação profundada sua dignidade e autonomia sexual e não pode ser condicionada pelo medo ou pela vergonha da sua vulnerabilidade. Seria sim vergonhoso que se protegessem na sociedade os sentimentos de vergonha da vítima. O caso Gisélle Gelicot é um exemplo poderoso de como a vítima procurou que a sociedade anulasse os preconceitos contra a vítima. Nessa procura deve estar comprometido o Estado de Direito democrático e constitucional.
Assim como ser descaraterizado como ser humano nos antigos e novos campos de morte é apenas vergonhoso para os criminosos e para os seus cúmplices, por vezes sociedades inteiras, também a vergonha e a imagem dos violadores e da sociedade que os proteja é a única concebível. “Todos,todos” somos vítimas quando crimes desta natureza ocorrem. É uma questão de democracia e de ética fundamental que condiciona a política criminal e deve ser vista como um sinal de que não há lugar à coisificação sexual de outro ser humano.
Maria Fernanda Palma
Professora Catedrática de Direito Penal
e Presidente do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Ex-Juíza do Tribunal Constitucional